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Conheça o livro infantojuvenil "A Jornada de Pablo", de Rafael Gonzaga

Atualizado: 11 de ago. de 2021


Adaptar dissertações de mestrado e teses de doutoramento e, em menor escala, trabalhos de conclusão de curso, para publicações no formato livro tem sido prática comum no Brasil nos últimos anos, coincidentemente, à medida em que desaparecem as honrarias e distinções no meio acadêmico brasileiro. O livro A jornada de Pablo, de Rafael Gonzaga, nesse sentido, enquadra-se nesse perfil. Rafael, porém, não se limitou a transformar em livro sua tese Invenções: arte africana, defendida em 2018 no Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

O autor foi além de meramente suavizar ou suprimir a parte teórica do tratado acadêmico, como em geral ocorre com essas publicações. Transformou um texto denso sobre a arte africana e sua relação com artistas e teóricos modernistas europeus numa aventura excitante, destinada a adolescentes, que em nada fica a dever à linguagem dos games atuais que tanto seduzem a essa parcela (mas não só) da sociedade. A Jornada de Pablo insere deidades, cosmogonia e modos de vida africanos, em particular as dos Iorubá, em temporalidades históricas que perpassam o contato entre europeus e africanos, o comércio de escravizados e a instituição do poder colonial e sua colonialidade no continente, dentre outras questões.

O Pablo do título é referência ao famoso e reconhecido artista espanhol Pablo Picasso, um dos expoentes, juntamente com o francês George Braque, do movimento artístico Cubismo, tributário da estética africana e que revolucionou as belas artes do Ocidente no início do século XX. O livro desenvolve-se ao longo de oito capítulos e traz um glossário para que o leitor se inteire de termos e questões mais específicos abordados no decorrer da aventura. Como se não bastasse, conta com belíssimas ilustrações da artista Poliana Fernandes, responsável também pela capa, que com grande sensibilidade traduziu visualidades das culturas africanas.

Já na Introdução, Rafael Gonzaga, ao detalhar o processo criativo na construção do livro e na escolha dos personagens, dá dicas a possíveis futuros escritores sobre como começar a esboçar suas próprias histórias. A Jornada de Pablo é aventura que traz um adolescente Picasso como um fascinado coadjuvante em uma missão salvadora liderada por Exu, em companhia de Oyá, Oxossi e Xangô. E como toda aventura necessita um vilão, A jornada concentra na figura do Sr. Picot, “um velho soldado aposentado do Império francês”, toda a mazela que representou para africanos e suas culturas a presença no continente de mercadores de escravizados, administradores coloniais, exploradores e etnólogos europeus com seus olhares racialistas e hierarquizantes, ávidos por registrar o “Outro” primitivo, nesse caso os “selvagens” habitantes do continente africano.

Por isso mesmo, uma câmera fotográfica está no centro da trama. Rafael, que na graduação desenvolveu projeto de iniciação científica na área de Artes trabalhando com imagens, recorre a um velho temor dos primórdios da fotografia - o de que esta aprisionava a alma ou a essência do sujeito fotografado -, para estabelecer uma analogia com o arresto do Ser africano por narrativas europeias do início do século XX, que desprezaram e desvirtuaram universos culturais então estranhos aos ocidentais, inferiorizando e cristalizando estereótipos acerca de vivências comunitárias e existências em equilíbrio com a natureza.

Demonizados no Ocidente, deidades da cosmogonia Iorubá vão sendo desvendadas para os leitores a partir de suas qualidades (características), recurso de que se vale também o autor, em alguns momentos, para abordar a forma e a estética da estatuária africana. O leitor, ao acompanhar as peripécias de Pablo, Exu, Oyá, Oxossi e Xangô em seus inúmeros embates para libertar a existência africana de estereótipos ocidentais, navega de forma suave nos meandros da complexa, rica e vibrante cultura de povos Iorubá.

É bem verdade que seguidores do Candomblé e/ou aqueles mais familiarizados com esse universo deverão torcer o nariz para o fato de Rafael Gonzaga dotar Oyá de um longo manto preto, cor vinculada a uma série de interdições nos cultos de matrizes africanas no Brasil. Em defesa do autor, porém, ressalte-se que na Nigéria não há tabu quanto à cor preta nos cultos aos orixás.

Para além da proeza de transformar uma tese acadêmica em texto fluído destinado a adolescentes, o livro A Jornada de Pablo tem por mérito a desmistificação da concepção e percepção de mundo entre culturas africanas, em geral tão erroneamente interpretadas, sendo leitura fundamental na introdução a universos e práticas culturais das Áfricas e de suas diásporas.


Nirlene Nepomuceno, professora da UFABC, pesquisadora na área de celebrações e práticas culturais na diáspora afro-latino-caribenha e negros no pós-abolição. Dezembro de 2020.


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